Oficina de criação de Romance Histórico
Carmem se dispõe ao ir ao banco quando o dia está claro e de sol aberto. Se chover, ela delega sua missão à Filomena que pega seu guarda chuva riscado e sai abanando os panos.
Hoje as duas estavam tão empenhadas em decidir o destino da humanidade que resolveram ir juntas, para poderem continuar o assunto que as ocupa desde o jantar de ontem.
Carmem prende os seus longos cabelos encaracolados, passa um brilho nos lábios, pega sua bolsa de couro preta, engancha o braço no de Filomena, e às risadas, saem pela calçada. Atravessam a praça, evitando cruzar em baixo da figueira centenária que abriga uma numerosa família de lagartas verdes e gordas que se desprendem dos galhos e, com freqüência, se alojam no ombro de quem estiver passando em baixo.
Filomena grita histérica só de lembrar que aquele bicho nojento possa lhe tocar o corpo.
Atravessam a rua e entram no banco que está lotado. Tem uma multidão aglomerada em frente ao caixa. Mas elas precisam trocar o cheque que seu Ricardo deixou para as despesas da semana. Aproximam-se do balcão alto, arredondado que circunda toda a grande sala, dentro da qual estão os funcionários sentados, cada qual em sua mesa, com uma pilha de fichas sobre as mesmas. As máquinas “facit” cantam enlouquecidas dando conta dos resultados dos cálculos perseguidos pelos bancários. Na mesa da frente, uma enorme máquina “Burroughs” barulhenta engole umas fichas verdes grandes de papelão grosso, para depois expelí- las com os lançamentos registrados em tinta preta ou vermelha. Se for crédito o lançamento é feito em preto, se for débito é feito em vermelho. O saldo das contas também obedece este padrão. Francisco nem olha para o povo à sua frente, que se aglomera no balcão enquanto espero o atendimento. Com o cigarro sempre preso ao canto da boca e um olho fechado para que a fumaça não lhe faça derramar lágrima, ele insere uma ficha logo que a outra sai daquela geringonça.
Dona Silvia, com a elegância que lhe é peculiar, cumprimenta som um sorriso, cada um que lhe dirige o olhar naquela imensidão de pessoas.
Carmem, enfim, consegue entregar o cheque ao Roberto, que sempre lhe diz uma brincadeira tentando se identificar de forma bem humorada, respeitando a cegueira de Carmem. Roberto destaca o canhoto do cheque e solicita que ela - com Filomena pelo braço- se dirija ao Caixa, e recomenda:O número do cheque é 328 415, não esquece. Quando chamarem este número tu deves de apresentar na boca do caixa.
Carmem fica esperando lhe chamarem enquanto Filomena vai lhe dando o relato do que ocorre em seu entorno. Primeiro descreve a cor azul da blusa de seda que Dona Silvia, elegantemente, veste. Comenta que seus óculos são modernos, e que o sapato combina com a blusa, enquanto Dona Silvia alheia aos comentários, atende o Sr Jaquim, Diretor da Flosul que é a grande empresa que está chegando na região e desenvolvendo uma plantação de pinos “illiottis” para extração de madeira. Informa-lhe que o Banco tem uma carteira de títulos e descontos. Que as madeiras vendidas poderão ser pagas através da carteira de títulos. Que as taxas variam de acordo com o montante dos negócios realizados. Diz que o sistema é mais seguro porque, em caso de inadimplência, o próprio banco encaminha para cobrança no cartório. Dona Silvia fala com propriedade sobre descontos por dentro, descontos por fora, de valor líquido de valor bruto, de montante de carteira de títulos, o que as duas escutam e não entendem nada.
Ao se aproximarem do caixa, encontram Maria Helena, professora aposentada que vai ao banco todos os dias porque acha que lá é um ambiente onde as pessoas ficam mais instruídas. Cumprimenta dona Silvia com reverência, e emenda a conversa dirigindo-se às duas: Eu fui professora minha vida toda. Estudei muito, fiz até pós graduação em Ijui, mas jamais me senti mais próxima do que do pé da Dona Silvia. Olha o que é a beleza, a soberania de falar de “títulos, de descontos, de inadimplência”, coisas que sabemos o que é porque consultamos o dicionário, mas que no nosso dia-a-dia jamais iremos usar. Eu nem saberia usar corretamente estas palavras dentro da frase.
Carmem retruca: Mas a senhora é uma pessoa tão culta, sabe tanto. E todas as pessoas que foram seus alunos sempre contam verdadeiras maravilhas sobre ser seu aluno. Sobre o quanto a senhora sempre soube mais que as outras professoras.
Eu sempre me esforcei, minha filha. Mas professora é como dona de casa. Nunca é mais que isso: Cuida de crianças, ensina-lhes bons hábitos, ensina-lhes a rezar. Houve choros, aparta brigas. Nunca trata com um executivo falando de “inadimplência”. Eu acho que trabalho nobre é este no banco. A dona Silvia trabalha de salto alto, com unhas grandes e pintadas, com os cabelos sempre bem arrumados com laquê para garantir a manutenção do penteado. Usa blusas de seda combinando com o sapato. E o que pode usar um professora? Unhas comidas pelo giz, sapatos baixos para poder correr atrás das crianças, calças largas e compridas para poder sentar no chão e se comunicar “com nossos clientes”. E a linguagem? Sempre usando palavras conhecidas para não ter de explicar tudo direitinho do que se trata! Eu gosto de coisas rebuscadas. De palavras que os homens usam. Destes termos mercadológicos. Se eu voltar a esta vida, quero ser bancária porque eu acho a profissão mais chique que conheço. Desde que Dona Silvia veio para esta agência o banco tomou uma cara de palácio, com sua rainha reinando soberana, abanando suas sedas e exalando seu perfume francês.
O Caixa chama o cheque 328415, Carmem, com Filomena pelo braço, chegam a boca do caixa, recebem e contam: CR$2.000,00 (Dois mil cruzeiros). Botam na bolsa, dão dos beijinhos em Dona Maria Helena, acenam um adeus gentil para dona Silvia e vão para o seu di-a-dia: espiar na janela o que acontece do outro lado do mundo.